8 de junho de 2009

Da série Cruz Credo e Outros Mitos



Samba de uma perna só
Para Luiz Otávio, o defensor do "sacialismo"

Numa cidade pequena, de algumas ruas e uma única avenida,
cercada de mato por todos os lados,
o tempo não corria...era apenas um dia após outro dia.
Pouco se tinha para fazer.
Televisão, só na casa do padre,
e depois de rezar o terço e toda a ladainha.
Os poucos habitantes enchiam a praça central
nos dias quentes de qualquer estação e nas noites frias, ano inteiro.
Viviam ali, a jogar conversa fora, gritar no truco,
paquerar as meninas, ouvindo musiquinhas sem graça,
no coreto velho ao lado da igrejinha.
Certa feita, num cair da tardinha,
quatro homens forasteiros passaram por lá,
ficaram na praça e sacaram suas armas:
uma viola, um cavaquinho, uma flauta e um pandeiro.
Sentaram-se em roda e afinaram os instrumentos.
De repente, sem mais nem porquê,
começaram a tocar um sambinha daqueles, de mexer na raiz.
Só que durou pouco tempo.
Seu Sampaio, o prefeito, veio correndo na direção dos músicos.
"Para, para, pelamordedeus!", gritava suando pelas ventas.
Indignados, eles interromperam a melodia e o da viola quis saber:
"Mas qual o problema?"
O prefeito não deu tempo nem de molhar o bico e setenciou:
"Tocar samba do bom, assim, chama o saci!"
"Como é que é?", perguntou o flautista admirado.
"Isso mesmo", explicou seu Sampaio. "O samba traz o saci
que vem pra cá amedrontar a gente!"
O do pandeiro, careca e líder da trupe, nem quis saber,
de tão teimoso que era."Não tem cabimento, seu prefeito!
A gente vai tocar assim mesmo! Se o tal vier, paciência!"
E recomeçaram a música na maior animação.
Seu Sampaio destrambelhou a correr ladeira abaixo.
E toda população fugiu ladeira acima.
Ninguém sabe ao certo o que aconteceu...
Mas, reza a lenda, que um gaiato passou por lá pouco depois,
sem saber de nada, e viu o grupo tocando que era uma beleza!
Tinha o cara da viola, um outro metendo a boca na flauta,
o careca animadão, dando show no pandeiro,
o do cavaquinho, super concentrado nos acordes,
e um negrinho serelepe, de gorro vermelho,
apitando um cachimbo e cantando bem alto:
"É o meu samba, de uma perna só... óóó...
é meu samba de uma perna sóóó..."


Fé cega, fera amansada

Nunca acreditei nisso.
Maldito ceticismo sem graça que só me atrapalha!
Mas nada como a vida, sábia encarregada das porradas cotidianas,
pra gente se rever e dar mão à palmatória, parar de cuspir pra cima
ou sentar no formigueiro achando que nada vai abundar.
Não me apresse que já conto o que me deixou desse jeito.
Preciso, primeiro, respirar fundo.
Eu rezava aquele terço imenso, toda noite, ao pé do rádio,
acompanhando o padre de sei lá onde, num AM 'estéril'.
Muito eu nem escutava...era um bzzzz....zzz...luchhhh....fiuuu....
de tanto chiado. Mas eu seguia... ave-maria, pai-nosso... creio em Deus Pai...
Tudo ia bem até a primeira carreirinha de contas rosas.
Depois, meu amigo, era um decoreba, um trem sem sentido
que brotava de minha boca mole e da mente ausente:
ave-nosso... pai-maria... creio Pai... em Deus credo...
Até que um dia, no meio dessa ladainha noturna,
ouvi um uivo forte e agudo, perto da entrada.
Fiz com a mão um "em nome do Pai" e encarei de frente, abrindo a porta.
Quase cai de costas sobre a cruz de madeira
que fica a espreitar da varanda de casa.
Vi a besta, vi o dito - eu que só acreditava em anjo e santo,
com aquela luminária na cabeça.
Quase mijei nas calças, mas fiquei firme, de terço em punho.
O bicho agonizava deitado aos meus pés.
Uivava como se uma faca cravasse seu peito peludo.
E não é que era mesmo um punhal de prata?
Mas olhei nos olhos da coisa, as lágrimas do danado escorriam.
Acredita que fiquei com pena do tal?
Que me ajoelhei e rezei para que aquilo lá não doesse mais?
E quando fiz isso, a pata do monstro encostou na minha mão.
Juro que ouvi um ronronar baixinho: "tira isso daí pra mim, tira?"
Eu não sei de onde arranjei coragem -
acho que do terço que larguei nas ancas da fera -,
porque apoiei meu pé no dito
e com força puxei a afiada do meio do peito sangrando.
Não... não... pode se tranquilizar. Sente-se e termine o seu chá.
Ele não vai te fazer nada, não.
Hoje sai cedo e volta bem tarde, porque é lua cheia.
Tem as tarefas de lobisomem para realizar - vai com Deus, menino!
Mas é isso, amigo, depois da tal noite, salvei o lobo da morte
e hoje ele mora comigo. De dia, ajuda nos trabalhos de casa,
faz massagem nos meus pés quando tô tensa.
A noite, se a lua for outra, jantamos juntos, rezamos o terço e,
dependendo de minha disposição,
rolamos no chão fazendo sexo selvagem,
porque não sou santa, né? Mas, creio.


Coisas de índio

Na tribo do velho índio, a hora da roda era sagrada.
Crianças à volta do círculo à espera de uma nova lenda.
Ele cantava e dançava, fazia todas baterem palmas,
e depois contava a história, que os pequeninos levavam para seus sonhos.
O sábio índio contou de onde vieram os pingentes,
porque uma menina da tribo, que fora à cidade tratar dos dentes,
ganhou um lindo, de cristal e pequenino, depois de mostrar sua bravura
e não chorar da anestesia nem do motorzinho chato e barulhento.
E o índio ia contando..."Uma vez, a índia que gostava de flores do campo,
perdeu-se na mata porque colhia só as mais raras.
A noite chegou muito brava, com ventos e relâmpagos.
E ela sentiu-se sozinha, amedrontada.
Ouvia o ruído do escuro, o bradar das árvores
e o sussurrar tímido das grandes folhagens.
Deitou-se numa clareira e ficou a pedir que os deuses a salvassem.
Acabou adormecendo e sonhou com um deus mágico,
que estava com ela, bem ao seu lado, acariciando sua face
e apontando sua lança poderosa contra todos os perigos da noite.
A menina acordou quando a lua começava a dar lugar ao sol,
que queimava lentamente as estrelas.
E viu aquele espetáculo lindo dessa troca da noite pelo dia.
Emocionada por estar viva e presenciar tanta maravilha,
deixou rolar uma lágrima e sentiu o deus mágico soprando-a no rosto,
com seu hálito doce, morno e imaginário.
A lágrima virou pingente e brilhava mais do que o sol que agora despontava.
Nunca mais a pequena se desfez daquele presente divino
e também passou a não ter medo de nada.
Só tinha medo mesmo de não mais chorar."
* A charge do Saci é de Leandro Reis

7 de junho de 2009

Da série Eróticos Urbanos

Engano
Ela entreabriu as pernas de propósito.
Sabia que ele veria, no fim de suas coxas,
o seu desejo escancarado e semi nu,
só coberto por pêlos aparados.
Ele olhou e corou-se todo,
mas gostou de saber que era para ele,
que ela se arriscava só para satisfazê-lo.
Imaginou-se abocanhando-a inteira.
O tempo passava e a cumplicidade entre eles aumentava.
Todos os dias, naquele horário, ela sentava-se na frente dele,
no ônibus ainda vazio, que rapidamente lotava,
exigindo mútuos malabarismos: ela para mostrar,
ele para olhar, ambos para nutrirem-se um do outro.
Esse jogo durou pouco mais de um ano.
Ele nunca ousou sentar-se ao lado dela.
Ela nem tentou descer no mesmo ponto dele.
Um dia, de chuva forte, ela não apareceu.
No outro, de sol escaldante, ela também não veio.
E assim foi por algumas semanas,
até que ele desistiu e passou a tomar o ônibus certo,
que o levava para casa.
Aquele? Ah, aquele tinha sido mero engano.


Kit
Ela morava bem no centro da cidade,
em uma kit do tipo super cubículo.
Trabalhava o dia todo, chegava em casa à noite,
preparava um lanche, tomava banho
e, assistindo à TV, dormia.
A rotina era essa de segunda a sábado.
Aos domingos, batia perna sozinha ou com amigas.
Mas, em uma noite, na hora do tradicional banho,
assim que ligou o chuveiro, ouviu gemidos do outro lado.
Até desligou a água para perceber o que estava acontecendo.
O gemido, masculino, intensificou-se, aumentou
e terminou com um sonoro óóó...
Ela sentiu o coração acelerar e um arrepio tomá-la por inteiro.
Ligou o chuveiro e continuou seu banho.
Concentrada naqueles gemidos, acariciou-se, tocou-se,
sorriu de satisfação, deliciando-se consigo mesma.
Nem ligou a TV. Dormiu direto, exausta e relaxada.
Na noite seguinte, de novo, na hora do banho,
lá estava o vizinho a gemer repetidamente.
Desta vez ela resolveu acompanhá-lo.
Gemia também, aumentando o tom conforme sua mão
tocava seu sexo, que há tempos sentia-se vazio.
Imaginou que aquele gemido, do outro lado, era alto,
tinha braços fortes, tatuagem nas costas largas,
pele morena e um pênis... um pênis... UAU!
O prazer aumentou e os gemidos também.
Quanto mais ela gritava, mais o bonitão do outro lado se manifestava.
E, desta vez, ela ouviu, no final, um agradecido "delícia..."
E não se conteve, devolvendo ao vizinho um sonoro "tesudo!"
O dia passou a ter mais sentido: o banho à noite.
E essa troca de gemidos durou um bom tempo.
Até que, numa noite - ela lembra-se que era sexta-feira -,
começou a ouvi-lo e, quando se preparava para o ritual,
escutou um outro gemido, também do lado de lá, mas... de mulher!
Desligou o chuveiro para certificar-se de que não era um delírio.
Não... não era. A vadia gemia, sim! Vaca!
Ficou enlouquecida, possessa, perdeu o controle.
O desgraçado traiu seu gemido com outro gemido!
Saiu pelada do banho, abriu a porta e foi bater na porta ao lado.
Bateu com força. Silêncio...
Bateu de novo e ouviu passos.
Ele abriu a porta com a toalha enrolada na cintura.
Ela sentou-lhe um tapa na cara.
Virou-se e saiu nua, vingada, deixando

um rastro de água pelo caminho,
enquanto ria-se por dentro:

ele era gordo, baixinho... e feio!