E o prêmio vai para...
A cidade pequena andava no maior agito. Surgiu, do nada, um sujeito
que, como dizem por aí, ‘causava’.
Nunca ninguém o vira antes. Mas, de repente, ele começou a frequentar
ruas, bares, praças... E tinha gente que se pelava de medo. Não porque era feio
ou ameaçador. Mas, porque ele abordava algumas pessoas e entregava medalhas.
Isso mesmo: medalhas!
Tudo começou com um rapaz, no seu carro, parado no semáforo, com
aqueles canhões e alto-falantes que fazem a rua tremer. O som no último volume:
“Tchatchatchu... tchatchu...”. O sujeito misterioso parou ao lado, de
bicicleta, e entregou uma medalha. Num megafone mandou ver: “Você venceu dois
concursos: ‘ Meu Ouvido Não é Pinico’ e ’Gosto de Escolher as Músicas que
Escuto’”. E sumiu rua abaixo.
No dia seguinte, na praça, uma moça comia pipoca e, ao terminar, jogou
o saquinho no chão. O sujeito estranho desceu de uma árvore e quase matou a
coitada de susto: “Primeiro lugar no concurso ‘Minha Cidade não é Seu Chiqueiro’”.
Entregou a medalha, guardou o megafone nas costas e escalou a árvore, sumindo
entre os galhos.
No mesmo dia, um carro parou em fila dupla, numa rua bem movimentada, para
esperar sei lá quem. O misterioso do megafone, montado em um skate, chegou
junto, enquanto uma fila de carros se formava atrás do veículo. “Parabéns! O
prêmio de hoje é seu, na categoria ‘Só Não é Mais Folgado Por Falta de Espaço’”.
Entregou a medalha ao premiado - que estava boquiaberto -, e desceu a ladeira.
Numa manhã, um grupo de pessoas esperava, em uma esquina, uma boa alma
motorizada parar para atravessar a rua, na faixa de segurança. Nem deu tempo de
arriscar-se entre os carros. O sujeito das medalhas surgiu do asfalto, parou em
cima da passagem de pedestres, fazendo os carros brecarem. “Que beleza! Prêmio
coletivo! Categoria ‘Um Dia Você Foi Pedestre, Mas Mesmo Assim Não Aprendeu
Nada’”. Fez uma distribuição geral de medalhes e sumiu por um bueiro – pelo
menos é o que dizem.
As premiações aconteciam em
diversas situações: gente folgada que fura a fila; que deixa resto de móveis e
coisas do tipo em terrenos baldios ou nas calçadas; pessoas que largam
carrinhos de supermercado nas vagas de estacionar (para essa categoria, não
havia medalhas que dessem conta!); motoristas que param nas vagas de idosos ou
de portadores de deficiência, sem ser um, muito menos o outro; cidadãos que dirigem
falando ao celular...
Todo mundo naquela cidade, uma hora ou outra, acabou recebendo uma
medalha.
Mas, as coisas estavam diferentes. A sensação geral é que a vida era
mais gostosa, as pessoas sentiam-se bem, próximas... nem parecia a mesma
cidade.
Até que um dia, o tal homem misterioso fez chegar a cada cidadão um
convite para estar no Parque em determinado horário, no final da tarde.
Todos foram e admiraram-se porque o local parecia bem maior, já que
acolheu milhares de habitantes.
Ao fundo, uma música soava calmamente, daquelas que dá vontade de
escutar para sempre.
O sujeito apareceu, sem ninguém saber de onde, e se colocou no centro
da multidão, sobre uma enorme pedra.
Não disse nada. Uma medalha apareceu no pescoço de cada cidadão. Nela
estava escrita a mesma mensagem. “Primeiro
lugar na categoria ‘Até que enfim caiu a ficha!’”.
A música aumentou, um cheiro de flores invadiu o lugar e o tal sujeito
deixou suas enormes asas rasgarem o casaco, tomando impulso e voando em direção
a Lua, que começava a aparecer no horizonte.
Muitos dizem que foi um delírio coletivo. Pode ser que sim, pode ser
que não. Tanto faz. Porque alguma coisa, de verdade, mudou ali.
O poder da propaganda
Marilene
acordava às 7, tomava café, lia o jornal e recortava frases inspiradoras. Em um
anúncio de liquidação, algo chamou a atenção: ‘Mas, é só até sábado!’. Pronto: a
frase desencadeava toda uma lógica própria. “Tenho até sábado para decidir se
vou ou não vou para a cidade grande visitar meus parentes”.
Recorto-a,
fixando no quadro de recados, sobre a escrivaninha. Sabia que passaria a semana
relendo aquilo, mesmo que no fundo já tivesse decidido não ir, porque detestava
aquela cidade e não gostava tanto assim dos tais parentes...
Naquela
manhã, Judi, a cadela vira-lata parecia não querer dar a tradicional volta na
rua. Enfim, Marilene conseguiu colocar a coleira na pequena para o passeio.
“Bom
dia, seu Carlos! Como foi de ontem pra hoje?”, perguntou ao porteiro.
“Ah,
dona Marilene. Nada mudou. A vida continua a lerdeza de sempre”, respondeu.
Ambos
riram e Marilene seguia seu caminho.
Encontrou
o menino Pedro, de bicicleta, indo em direção à loja do pai.
Judi
começou a latir. Marilene não entendia porque ela estava daquele jeito, quando
começou
a ouvir, cada vez mais alto: “Pamonha, pamonha, pamonha...” e viu, do outro
lado
da rua, um caminhãozinho descendo desembestado.
Marilene
assustou-se, paralisou-se e grudou-se no lugar. E tudo escureceu.
Quando
acordou, estava de branco, deitada na maca. “Morri!”, mas, não. Era o hospital,
onde aguardava o efeito da anestesia da cirurgia que colocou seu fêmur no
lugar.
“E
Judi? Cadê Judi?!”
“Sua
cachorrinha está bem, com o pessoal da recepção”, falou a enfermeira, tentando
acalmá-la.
Bateu
desespero na Marilene. Podia ter morrido ou ficado com sequelas para sempre. Também
se deu conta que não tinha ninguém a quem recorrer. Naquela cidade pequena era
ela, Judi e Deus. Nenhuma pessoa mais íntima, para trocar confidências ou
curativos. Foi quando se arrependeu por ter se fechado tanto.
Mas,
para sua surpresa, assim que chegou de maca à enfermaria, deu de cara com uma
senhora e uma moça: eram as parentas da cidade grande, que ela não gostava
tanto assim...
“Minha
querida!”, disse tia Cida, beijando a testa de Marilda.
“Ficamos
preocupadas quando o porteiro do prédio ligou”, contou a outra, prima Olivia.
“Mas,
mas... como ele sabia, se nunca falei de vocês?”, perguntou Marilda, atordoada.
“Como ele tinha sua chave, foi ao apartamento procurar algum contato para
chamar. Viu no quadro de recados nosso telefone ao lado de uma frase”, explicou
a prima.
Marilda
começou a rir sem parar e as duas visitantes, com cara de interrogação, riram
também, só para não fazer desfeita.
As
parentas se revezaram: uma ficava com Marilda, no hospital, a outra cuidava de
Judi.
Menos
grogue, Marilda relembrou o dia do acidente. Talvez Judi tivesse pressentido
algo, por isso não queria sair. Também soube que o menino Pedro foi quem chamou
o resgate.
Enquanto
a tia ajustava os travesseiros na cama, Marilda perguntou-lhe até quando
pretendiam ficar com ela, ao que a tia prontamente respondeu: “Só até sábado”.
Logo
em seguida, ouviram batidas na porta do quarto. Era um senhor sexagenário, com
rosas numa mão e um pacote de pamonhas na outra. Seu Antônio, o dono da
camionete, veio desculpar-se, querendo assumir todos os custos causados pelo
acidente.
Quanta
gentileza, não só pelo ato responsável, mas pelas flores e as pamonhas que ele
passou a levar toda semana à casa de Marilda, até que ela o convidasse para
tomar um café... almoçar... jantar e, finalmente, pernoitar, enquanto Judi uivava
na varanda, à luz da lua, que clareava, no quadro de recados, a frase de uma
propaganda de supermercado: “Lugar de gente feliz!”