21 de junho de 2009

Da série Amar é...

... ter classe
Ela colecionava fotos dele,
que o próprio desconhecia:
cuspindo na rua enquanto deixava o cachorro evacuar à vontade na calçada;
coçando o saco durante conversa com amigos na esquina;
caído num canto do bar, completamente bêbado;
com o olho roxo depois de ter provocado uma briga;
correndo pela avenida porque jogou um tijolo na janela do vizinho.
Eram séries de momentos peculiares, que constaram no processo de divórcio.

... desfazer nós
Os olhares se cruzaram,
depois as mãos, as línguas e, finalmente, o sexo.
Foi quando dois destinos se trombaram e, nove meses depois, eram três.
O início foi difícil. O meio, então, nem se fala.
Fácil foi o fim: descruzaram-se.

... ouvir o destino
Nunca se toleraram.
Na escola, eram de turmas diferentes.
Por ironia do destino, entraram na mesma faculdade,
e logo se confrontaram na eleição do Centro Acadêmico:
lideravam chapas diferentes.
Cada um se formou e seguiu seu caminho.
Anos mais tarde, encontraram-se em um Congresso.
Eram palestrantes e a tese de um contestava a tese do outro.
Tempos depois, surpreenderam-se ao se verem no tribunal.
Ela, testemunha de defesa. Ele, testemunha de acusação.
Depois do julgamento, cada um virou as costas e foi embora.
Mas minutos depois reencontraram-se num bar,
onde ambos queriam relaxar um pouco.
Ele, educadamente, convidou-a para sentar-se à mesa.
Ela aceitou, um pouco reticente.
Começaram com mútuas provocações, mas, depois da segunda dose,
falavam de suas vidas, decepções, esperanças, culminadas num longo beijo.
Foram para a casa dela e vivenciaram uma noite de intensa paixão e desejo.
Acordaram juntos e ele foi providenciar o café.
Ela criticou o ponto das torradas que ele fez.
Ele achou ruim o suco de laranja que ela preparou.
Disseram-se ofensas e frases duras, para magoarem-se.
Ele vestiu-se e saiu batendo os pés e a porta atrás de si.
Nunca mais se encontraram. O destino cansou-se.

... não ter certezas
Quando ela tinha 15 anos,
resolveu que jamais se apaixonaria.
Aos 16, estava de quatro por ele.
Fez 25, prometendo ao mundo que não se envolveria mais.
Aos 26, saia casada da igreja, jogando o buquê.
Aos 30 gritou aos quatro ventos que não teria filhos.
Aos 31 engravidou e pariu gêmeos.
Quando completou 45 anos, confessou a Deus que desejava separar-se.
Aos 46 fizeram a segunda e inesquecível lua de mel.
Hoje, aos 80 anos, ela decidiu não fazer promessas,
e ambos caminham lado a lado, até sabe-se lá quando.


Da série Vestida para...

... amar
Não era de renda, pois achava "demodê".
Era cetim, sem muito brilho.
Justo no corpo esbelto, preso à cintura fina e torneada.
Com estilo ela disse "sim",
e saiu da igreja com seu homem,
pronta a amá-lo, de corpo e alma.
Eternamente.

... trair
Os anos se passaram, pouco menos de uma década.
O bustiê sustentava os seios tamahho 44.
A saia, aberta na lateral, mostrava as coxas roliças.
Um xale cobria os ombros e as costas nuas.
E assim ela entrou no quarto de um motel barato,
seguida por um qualquer, só para sentir-se desejada.
Virou rotina.

... coçar
Já na meia idade,
resolveu parar de trabalhar, porque cansou.
O esposo tinha muitos bens e pouca sanidade.
Melhor administrar as riquezas e manipular o tolo.
Ficou a fazer nada, engordando o tempo, o corpo e a preguiça,
vestida em seu roupão de seda, chinelos de camurça e
taças diárias de champagne.
Para embebedar-se.

... matar
Cansou de ser nada, sentir-se vazia, transbordando gordura.
Estava farta da ausência do homem e marido, largado à cama,
completamente demente e dependente.
Não podia se quer usufruir de seus bens
com aquele semidefunto pendurado em seu destino.
Colocou a blusa preta, a saia de pregas e meias na mesma cor.
Os sapatos de salto baixo compuseram seu perfil viúvo.
E assim injetou ar na veia do morimbundo.
Ressuscitou-se.

... confessar
A culpa visitava-a todos os dias,
à noite sonhava com veias e seringas.
Achava que ele voltaria para buscá-la.
Resolveu confessar-se para sentir alívio.
Usou o vestido azul-marinho e o chapéu com flores lilás,
que realçavam seu corpo novamente esbelto.
Entrou no confessionário e suplicou:
'Padre, dai-me a sua benção porque pequei.'
Mas perdeu a voz, o senso, o ar,
quando do outro lado da janelinha,
o falecido a encarava tenebrosamente.