4 de julho de 2009

Da série Diálogos Rimados Infames

Saia justa

-- Como você está, meu amor?
-- Ando assim, com certa dor...
-- E o que te aflige, minha princesa?
-- Acho que é essa incerteza.
-- Do que falas, minha amada?
-- É melhor ficar calada...
-- Pode abrir-se que te escuto.
-- Você vai é ficar puto!
-- Não me deixe ansioso...
-- Bem melhor do que nervoso...
-- Mas me diga, conte agora!
-- Acho bom eu ir embora.
-- Nem pensar. Fala! Venha!
-- Se segura: estou prenha...

Diagnóstico

-- Pode deitar-se, paciente.
-- Ai, doutor, eu sou demente!
-- Por que veio consultar-me?
-- Já não sei mais controlar-me.
-- Você acha que está louco...
-- E de médico tenho um pouco.
-- Vamos fazer um exame.
-- Eu não quero dar vexame!
-- Diga agora o que sente.
-- Eu já disse: sou demente!
-- Desde quando pensa assim?
-- Ao matar o Benjamim.
-- Minha nossa! Isso foi quando?
-- Antes de enforcar o Brando...

Pegadinha

-- Garçom, por favor?
-- Pois não, seu doutor?
-- De entrada, quero salada.
-- Não indico. Foi mal lavada.
-- Então, traga-me caldo quente.
-- Na sua idade quebra o dente!
-- Mas que ofensa! Chame o gerente.
-- Ele não veio. Tá doente.
-- E quem manda neste pulgueiro?
-- Seu Anísio, que foi ao banheiro.
-- Eu não vou querer mais nada!
-- Trago a conta então fechada?
-- Mas que conta, tagarela?
-- Da porção de berinjela.
-- Não comi, não vou pagar!
-- Tudo bem, mando embrulhar.
-- Eu não quero! Já te disse...
-- Meu senhor, mas que chatice!
-- Como assim, seu insolente!
-- Vá saindo, ex-cliente...
-- E me manda ir embora?
-- Mal pagante vai pra fora!
-- Vou chamar o delegado!
-- Olhe a câmera, ali ao lado!!!!

Da série Memória


Quando ela é de menos

Perdeu todas as lembranças. Não foi assim, de uma vez, não. Aconteceu aos poucos e, quando percebeu... quem ela era?
Procurou na caixa de brinquedos, no fundo do armário, o tempo da infância. Nada. Nenhum aniversário com bolo confeitado ou vestido rosa e tranças feitas pela doce madrinha. Nem os natais, com a visita do Papai Noel - o vô Mauro fantasiado. Também não se lembra do dia em que, aos prantos, foi pela primeira vez para a escola. Ausência de tudo, sem repentes nem relâmpagos de história.
Recorreu aos velhos diários escritos na adolescência. Não se lembrou qual foi o primeiro amor - certamente platônico - nem quando começou a usar sutiã e batom rosa. Nada lhe veio à mente sobre o primeiro beijo nem os bailinhos "mela-cueca", rostos colados, em alguma garagem da casa de alguma amiga. Também não se recordava da primeira transa, do casamento - festa bonita -, do emprego onde ficou quase que a vida toda, dos filhos que vieram, do divórcio que os sucedeu... tudo esquecido, largado em algum buraco negro da memória vazia.
Mas de tudo isso, o que realmente a incomodava, deixava-a extremamente indócil e irritada, era não se lembrar, de jeito nenhum, onde guardou os malditos cigarros!

Quando ela é demais

Ele se lembrava de tudo sobre a vida dos outros e acontecimentos gerais.
"A Cris falou com 1 ano e dois meses", "Paulo andou com 11 meses".
"O primeiro show de Frank Sinatra no Brasil foi dia 2 de fevereiro de 1980, no Maracanã".
E por aí ele ia: "a primeira namorada do Gledson chamava-se Silvia. Eles se conheceram em 1955 e ela tinha uma pinta no ombro esquerdo".
"Lembro que o Fábio tirou 5 em português, quando estávamos no segundo ano primário... em 1948".
E dizia coisas como, por exemplo, Alberto ter casado numa tarde de dezembro, no começo dos anos 50, e ter chovido à beça, destruindo a cobertura preparada para a festa. E Alberto nem lembrava se quer o dia de seu casamento.
Memória impecável. Desde criança pequenina. Um baú de recordações, fatos, curiosidades...
Um dia, seu neto perguntou-lhe ingenuamente: "Vô, qual foi o dia mais feliz da sua vida?"
Ele parou por alguns minutos, deu um sorriso maroto e respondeu: "Foi quando o professor me perguntou qual era a idade de Einsten quando ele saiu da Alemanha. Não lembrava de jeito nenhum. Sua avó, que sentava atrás de mim, assoprou a resposta... e eu me apaixonei por ela".

1 de julho de 2009

Da série Bíblicos

Gênesis

Aquele quadro era sombrio, pendurado na parede sob a cama do casal.
Tentaram de tudo para retirá-lo dali, mas, em vão... a cola usada não cedia. A parede era resistente e o prejuízo para removê-la não estava previsto nos gastos da reforma. Ficou lá... anos, décadas... aquele homem estranho, de olhar penetrante, num cenário de terror, a observar tudo a sua volta.
Até que um dia resolveram derrubar a casa e construir um prédio.
O desafio maior dos engenheiros era tirar a parede e o quadro, totalmente sem sentido.
Usaram todas as técnicas disponíveis, até explosão com dinamite. O máximo que conseguiram foram algumas ranhuras. Só.
O edifício foi construído e a parede preservada. Claro que ficou esquisito, mas fazer o quê?
E aquela figura sinistra, do quadro, permanecia impávida, apenas a admirar o tempo passando e as pessoas que circulavam ao redor.
Passaram-se décadas, séculos, até a guerra nuclear, que destruiu todo o Planeta – ou quase todo: a parede permaneceu em pé e o quadro, mesmo um pouco chamuscado, ali, pendurado e firme.
A calota polar descongelou-se e a inundação arrasou ainda mais com o que restara da Terra. Mas a parede e o quadro, submersos na água gelada, mantiveram-se do mesmo jeito, sem tirar nem pôr.
Chegou o tempo da seca, e a parede parecia um cacto no meio do deserto, intocável.
A figura desenhada no centro da pintura estava tão tenebrosa quanto antes, como se tivesse acumulado vidas, após tantas encarnações de desgraças.
Certa feita, uma nave extraterrestre passou pelo Planeta morto.
Os radares registravam a presença de algo que parecia pulsar.
Pousaram e viram a tal parede com o quadro sendo ostentado.
Admiraram-se com aquela figura singular, no meio da tela.
Analisaram cada parte da obra, fizeram testes, reuniram especialistas...
Concluíram que aquela era a entidade que regia o planeta, que tinha o poder da eternidade e de ser indestrutível.
Eram céticos, por isso não o veneraram. Mas criaram um vínculo com aquilo.
Em torno na parede e do quadro abrigaram-se e dali nasceu uma nova civilização.
O mundo foi repovoado e, com o passar dos anos, as crenças tomaram o lugar do ceticismo: o homem do quadro era seu deus. E a parede separava os fortes dos fracos...



Apocalipse

Todo o dia, na mesma hora, você fica aí, parado.
Parece olhar nada, mas vê tudo através dos escombros do velho edifício:
menino que desembestava pelo corredor no seu patinete azul celeste,
enquanto eu gritava, torcendo pela sua vitória óbvia e solitária.
Lembro de meus cabelos crespos, armados, aparelho nos dentes e botas ortopédicas.
Mesmo assim (essa ‘formosura’!), era eu quem você convidava para as brincadeiras de todas as tardes.
Quando chovia muito, tia Malu, aquela vizinha que fazia pães maravilhosos,
nos contava histórias sobre sua vida pregressa e cheia de aventuras estranhas.
(Lembra daquela que ela jurou de pé junto ser verdadeira? Que ela tinha namorado um lobisomem? Nossa! Na época eu acreditei e fiquei noites sem dormir, imaginando como era beijar a fera!).
Crescemos ali, naquele prédio antigo, de três andares, onde fazíamos das escadas nossas cavernas secretas.
Você se recorda do dia em que sua mãe te deu uma surra porque você matou um pássaro com o estilingue? Foi sem querer, eu sei. Mas todo mundo ficou contra você, menos eu.
Sugeri que fugíssemos para longe, já que ali você estava sendo condenado pela maioria.
Juntei algumas roupas e brinquedos meus em duas sacolas de feira de minha mãe.
Você guardou umas tranqueiras numa mochila de viagem.
Saímos decididos a desbravar o mundo e provar a todos que você era uma boa pessoa, mesmo depois de matar um passarinho.
Nossa fuga durou quatro horas, porque, quando nos demos conta, estávamos de volta, na esquina de casa.
Entendemos que a alma do bichinho é que nos fez retornar. E foi bom, porque naquele dia mesmo ninguém mais olhava esquisito para você. O perdão tinha triunfado!
Sei que quando você fica aí, olhando para o horizonte que construímos nesses escombros, sente falta de mim. Sinto isso, mesmo sendo alma, que há tempos vaga por aqui, querendo saber por que você resolveu, de uma hora para outra, colocar fogo no prédio, matando a todos, enquanto você ficou do lado de fora, chorando e admirando a altura das labaredas. Tenho certeza de que sabe que estou aqui todos os dias, assim como você, tentando entender... foi sem querer?


30 de junho de 2009

Da série Diálogos Inconsequentes - parte 2


Definições

-- O que é o medo?
-- Ah... é uma dor que aperta a alma.
-- E o que é a raiva?
-- Hum... essa é a dor que machuca o coração.
-- E a inveja? O que é?
-- Bom... aí é aquela dor que dá nó na garganta, sabe?
-- Tá... e o que, afinal, é a dor?
-- É a inveja que o medo tem da raiva...

Dúvida

-- Será mesmo que o infinito não tem fim?
-- Sei lá... eu acho tudo muito estranho...
-- Por quê?
-- Porque as pessoas afirmam isso com a mesma certeza
que dizem que um metro tem cem centímetros.
-- Ué? Mas e daí?
-- Daí que saber quanto tem um metro é bico, mas dizer que o
infinito tão tem fim... me poupe!
-- Mas por que essa implicância?
-- Quer saber mesmo?
-- Quero!
-- Porque me parece um puta comodismo!

Cegueira

-- O que você vê quando fecha os olhos?
-- Não vejo nada, né?
-- Bobagem! Feche os olhos e me diga o que vê.
-- Tá... hum... vejo um escuro com manchas amareladas
que aparecem vez ou outra...
-- Nossa! Eu vejo bem diferente...
-- É? E o que você vê?
-- Ah... vejo o infinito, a paz, o sossego...
-- Pois é... cada um não enxerga como quer...

Discussão

-- Detesto quando você diz que eu disse e eu não disse nada!
-- Olha... se eu digo que você disse, é porque disse mesmo.
Ou acha que tô inventando?
-- Mas tô dizendo que não disse, teimoso!
-- Teimoso é você que diz que não disse se acabou de dizer!
-- Tá vendo? Nossa relação sempre acaba nesse diz que disse...
-- Como assim? Agora me diz o que você quis dizer com isso!