1 de julho de 2009

Da série Bíblicos

Gênesis

Aquele quadro era sombrio, pendurado na parede sob a cama do casal.
Tentaram de tudo para retirá-lo dali, mas, em vão... a cola usada não cedia. A parede era resistente e o prejuízo para removê-la não estava previsto nos gastos da reforma. Ficou lá... anos, décadas... aquele homem estranho, de olhar penetrante, num cenário de terror, a observar tudo a sua volta.
Até que um dia resolveram derrubar a casa e construir um prédio.
O desafio maior dos engenheiros era tirar a parede e o quadro, totalmente sem sentido.
Usaram todas as técnicas disponíveis, até explosão com dinamite. O máximo que conseguiram foram algumas ranhuras. Só.
O edifício foi construído e a parede preservada. Claro que ficou esquisito, mas fazer o quê?
E aquela figura sinistra, do quadro, permanecia impávida, apenas a admirar o tempo passando e as pessoas que circulavam ao redor.
Passaram-se décadas, séculos, até a guerra nuclear, que destruiu todo o Planeta – ou quase todo: a parede permaneceu em pé e o quadro, mesmo um pouco chamuscado, ali, pendurado e firme.
A calota polar descongelou-se e a inundação arrasou ainda mais com o que restara da Terra. Mas a parede e o quadro, submersos na água gelada, mantiveram-se do mesmo jeito, sem tirar nem pôr.
Chegou o tempo da seca, e a parede parecia um cacto no meio do deserto, intocável.
A figura desenhada no centro da pintura estava tão tenebrosa quanto antes, como se tivesse acumulado vidas, após tantas encarnações de desgraças.
Certa feita, uma nave extraterrestre passou pelo Planeta morto.
Os radares registravam a presença de algo que parecia pulsar.
Pousaram e viram a tal parede com o quadro sendo ostentado.
Admiraram-se com aquela figura singular, no meio da tela.
Analisaram cada parte da obra, fizeram testes, reuniram especialistas...
Concluíram que aquela era a entidade que regia o planeta, que tinha o poder da eternidade e de ser indestrutível.
Eram céticos, por isso não o veneraram. Mas criaram um vínculo com aquilo.
Em torno na parede e do quadro abrigaram-se e dali nasceu uma nova civilização.
O mundo foi repovoado e, com o passar dos anos, as crenças tomaram o lugar do ceticismo: o homem do quadro era seu deus. E a parede separava os fortes dos fracos...



Apocalipse

Todo o dia, na mesma hora, você fica aí, parado.
Parece olhar nada, mas vê tudo através dos escombros do velho edifício:
menino que desembestava pelo corredor no seu patinete azul celeste,
enquanto eu gritava, torcendo pela sua vitória óbvia e solitária.
Lembro de meus cabelos crespos, armados, aparelho nos dentes e botas ortopédicas.
Mesmo assim (essa ‘formosura’!), era eu quem você convidava para as brincadeiras de todas as tardes.
Quando chovia muito, tia Malu, aquela vizinha que fazia pães maravilhosos,
nos contava histórias sobre sua vida pregressa e cheia de aventuras estranhas.
(Lembra daquela que ela jurou de pé junto ser verdadeira? Que ela tinha namorado um lobisomem? Nossa! Na época eu acreditei e fiquei noites sem dormir, imaginando como era beijar a fera!).
Crescemos ali, naquele prédio antigo, de três andares, onde fazíamos das escadas nossas cavernas secretas.
Você se recorda do dia em que sua mãe te deu uma surra porque você matou um pássaro com o estilingue? Foi sem querer, eu sei. Mas todo mundo ficou contra você, menos eu.
Sugeri que fugíssemos para longe, já que ali você estava sendo condenado pela maioria.
Juntei algumas roupas e brinquedos meus em duas sacolas de feira de minha mãe.
Você guardou umas tranqueiras numa mochila de viagem.
Saímos decididos a desbravar o mundo e provar a todos que você era uma boa pessoa, mesmo depois de matar um passarinho.
Nossa fuga durou quatro horas, porque, quando nos demos conta, estávamos de volta, na esquina de casa.
Entendemos que a alma do bichinho é que nos fez retornar. E foi bom, porque naquele dia mesmo ninguém mais olhava esquisito para você. O perdão tinha triunfado!
Sei que quando você fica aí, olhando para o horizonte que construímos nesses escombros, sente falta de mim. Sinto isso, mesmo sendo alma, que há tempos vaga por aqui, querendo saber por que você resolveu, de uma hora para outra, colocar fogo no prédio, matando a todos, enquanto você ficou do lado de fora, chorando e admirando a altura das labaredas. Tenho certeza de que sabe que estou aqui todos os dias, assim como você, tentando entender... foi sem querer?


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