26 de setembro de 2009

Da série As intransigências da morte


Monólogo 1

Ela é inconsequente. Não quer saber o que se pensa, o que se sente.
Vem e pronto! Não respeita a lei natural das coisas: nascer, crescer, crescer, crescer mais e mais, e morrer.
Quebra ciclos, aborta o que ainda está por vir.
Nem aí para o óbvio: levar os velhos e poupar os jovens.
A morte é insubordinável. Cruel. Decepa a alma da mãe,
tirando-lhe o filho menino.
Não tem pena. Não tem meias verdades, nem enganos. É o que é.
A morte não tem coração. E por isso está sempre querendo levar o da gente...


Monólogo 2

Penso assim: morte é para quem sabe um monte, sofreu tudo, alegrou-se outro tanto e cansou. É insensato imaginar um avô vendo seu neto morrer. O pai, a mãe, que tudo depositaram na sua cria, esvaziarem-se de esperança porque o seu sentido se foi.
Fica decretado, pois, que filhos só se vão depois de seus pais.
É assim que tem de ser... Hã?! Mas, por que não pode ser assim?


Monólogo 3

Quando a morte levou você, meu pai, eu fiquei tão revoltada!
E pensava todos os dias: “Por que não me matou primeiro, sua idiota?”
Porque, pai, era por você que eu queria brilhar por aí,
enquanto seu olhar batia palmas para mim.
Não foi justo ficar sem meu público.
Fica decretado, pois, que pais são eternos, para que os filhos nunca percam a platéia, nem o palco, nem o chão.
É assim que tem de ser... Hã?! Mas, por que não pode ser assim?


Monólogo 4

Sei que vou morrer um dia. Todo mundo sabe. Mas vivo como se não soubesse.
Só me lembro quando alguém que amo morre. Daí me vem o pavor de perder outros.
Planejo gostar mais, conviver mais, acolher mais...
Também temo morrer sem levar comigo experiências que possa compartilhar com outras almas, nas rodinhas de conversas eternas, sobre os feitos neste tempo e Planeta.
E faço planos: viagens que não realizei, coisas que quero concretizar, lugares onde tenho vontade de cravar meus pés.
Mas os dias passam e a lembrança de que vou morrer – porque sei que vou – e os planos que fiz dissolvem-se no cotidiano da onipotência, onde não penso no fim... só quando alguém que amo morre.
E faço mais planos... quero acolher mais... lugares para onde ir... ideias a compartilhar... até que a rotina...
Mas um dia a morte vai me surpreender – porque eu sei que vai.
E aí? Aí não saberei o que fazer...

Em memória de Guilherme. Para Ângela Teresa e José Augusto.

24 de setembro de 2009

Da série Desconstruindo

Cadê?

Eu era assim, ó: controlava tudo.
Desde a conta do banco, a hora de acordar, comer e deitar, até o crescimento das plantas, o começo, meio e fim de minhas histórias pessoais, o que ia dizer sabendo o que o outro ia pensar; o que pensar ao dizer do outro.
Controlava a temperatura dentro de casa, e fora dela, o meu intestino – quando prender, quando soltar.
Os sentimentos e sua intensidade – agora é hora de odiar muito!!! Agora é pra se apaixonar total!!! Agora esquece esse e procura outro!!!
Controlava o trabalho, quem trabalhava comigo e quem não trabalhava.
Imaginava o que comprar para agradar aquele que sempre se desagradava e já sabia o que ele ia dizer quando o surpreendesse.
Controlei a gravidez, as contrações, a dor que senti, a depressão que veio depois...
Os orgasmos – dele e meu -, os gemidos na hora da transa, o revirar de olhos...
Tudo, absolutamente tudo, estava sob o meu controle!
Mas um dia, sem mais nem menos, dei de cara com a minha kriptonita, que derrubou um a um os meus poderes de autocontrole e de controle alheio.
Puft! Sumiu: a conta no banco estoura todo mês. Não sei mais o meio e o final de minhas histórias pessoais. A temperatura desregulou total. Nem imagino o que o outro está pensando, muito menos o que vou dizer. Perdi a noção do que comprar pra aquele que reclama de tudo. Não sei mais qual é a melhor hora dos orgasmos – meus e dele. Meu intestino? Agora tem vida própria!
E cadê o maldito controle da TV?