8 de agosto de 2009

Da série Enquanto você dormia...


Avesso

Enquanto você se distraia com seu umbigo, eu olhava para os lados e via horizontes fora dos muros.
Achava que aquele seu céu, onde apenas você cabia,
era tão finito que podia contar nos dedos as estrelas - suas.

Enquanto você falava de seus desejos, surdo aos meus,
os sonhos, que embalavam a noite e o dia,
fortaleciam os músculos flácidos de minha alma castigada
pelo tempo em que carreguei seu mundo em minhas costas.

Enquanto você sorria para suas alegrias únicas,
minhas lágrimas gastavam as esperanças que nos tinham
e enxugava cada uma com os restos de mim, trapos solitários,
separados do que nunca coube nesse nosso vazio.

Enquanto você dizia que eu era seu tudo
- um eu que eu não era -,
peguei-me atrás do espelho, surpresa...
Porque contigo - percebi - fui sempre avesso.

Insistência

-- Precisamos conversar.
-- Diga, amor.
-- Ando muito infeliz.
-- Problemas no trabalho?
-- Não...
-- Já sei! Sua família, de novo!
-- Não... eu...
-- Descobriu, finalmente, que aquela sua amiga é uma falsa!
-- Mais ou menos isso...
-- Sabia! Eu te avisei! Sempre dei o toque para você ter cuidado com ela.
-- Sim... realmente você me avisou várias vezes... e demorei a enxergar.
-- Tudo bem, querida. Faz parte... melhor você ter descoberto sozinha.
-- É.... mas eu descobri mais do que queria.
-- ...
-- Descobri que ela é uma sacana, traiçoeira. E só fui atrás disso tamanha sua insistência.
-- Pois então!
-- Porque, na verdade, sempre achei essa sua insistência bastante estranha.
-- Hã?!
-- Dia sim, dia não, você vinha com esse papo de que não devia confiar nela.
-- Foi!
-- Você só não me disse que ela me traia com você.

Intestino

Durante muito tempo ele foi fixado na mesma idéia. Queria criar um negócio único, que o deixaria milionário: a revolucionária máquina de reciclar merda.
Era mais ou menos simples: a pessoa entregava a dita num saco especial, com a etiqueta contendo tudo o que consumira nas últimas 24 horas. Depois de um processo apurado, que duraria cerca de duas horas e dez minutos, o coco voltaria a ser a matéria de origem.
Por exemplo: fulano comeu pizza de mussarela com milho e, de sobremesa, torta de limão.
Após o procedimento da reciclagem, em compartimentos hermeticamente fechados estariam acondicionados a farinha de trigo (massa da pizza), o leite (mussarela), a espiga (do milho), os dois limões (da torta) etc. e tal.
Com isso, tudo poderia ser recuperado e a economia garantida ao bolso do cidadão que, por menos de 30 reais, comeria, no mínimo, duas vezes a mesma coisa.
Mas um problema acabou sendo detectado nessa brilhante e escatológica invenção: o “evacuante” tinha de saber cozinhar o que evacuou, ou seja, aquilo que ele comeu, foi digerido e, horas depois, eliminado. Por isso, o super inventor resolveu associar-se a um chef de cozinha que garantisse, nos invólucros hermeticamente fechados, um caderninho com as receitas para aqueles que não tinham o dom da culinária – tipo aquelas receitas que vêm nos rótulos de latinhas, sabe?
Outra questão também levantada por outra pessoa a quem ele contou seu incrível projeto: mulheres tendem a ter intestino mais preso. Às vezes ficam dias sem evacuar, o que significaria que nem sempre lembrariam o que consumiram para fornecer informações precisas na hora de orientar o processo de reciclagem da merda.
A saída do gênio foi garantir 100% de resultados ao coco de homens e deixar claro - no folder explicativo, no site e na apresentação PPT - que, para mulheres com prisão de ventre, o resultado final poderia ser diferente daquele relatado pela fazedora do coco mega atrasado.
Mas uma feminista, que também soube da ideia, achou por bem alertar que grupos voltados aos direitos humanos cairiam em cima, já que o privilégio da total eficiência do produto seria dada apenas aos machos. Criariam uma polêmica complicada por causa do gênero da merda. Literalmente, ia feder!
Psicólogos também comentaram que essa tecnologia de reciclagem estaria reforçando, em indivíduos mais fragilizados psicologicamente, o retorno à fase anal e oral, um retrocesso à infância – fazer e comer o próprio coco.
Durante muito tempo ele foi fixado na mesma idéia. Mas depois de tudo o que ouviu e viu, sempre que contava a alguém o que pretendia fazer, não teve outro jeito se não mandar tudo, de fato, à merda, e voltar a vender laxante na cidadezinha pacata onde morava, de um interior qualquer.

*Você, leitor, deve estar se perguntando o que este texto tem a ver com a série. Explico: enquanto você dormia eu tive tempo de sobra pra pensar em tanta m...!

4 de agosto de 2009

Da série Pronto! Falei!


Uma homenagem ao Irineu, amigo querido.
O futuro idealizador do site:
www.prontofalei.com.br

I

-- Olha. Na boa...
-- Quê?!
-- Você não percebe que não cola?
-- Como?
-- Chega com essa cara de sonsa fingindo não saber de nada.
-- Hã?
-- Usa a fala mole pra se fazer de boazinha.
-- Mas...
-- E tá sempre metendo o pau nas pessoas, quando elas dão as costas.
-- Eu...eu...
-- Viu? Viu? A cara de sonsa e a fala mole!
-- ... (fazendo bico de choro).
-- E sabe o que mais? Você é uma chata!



II

-- Preciso dizer uma coisa.
-- Diz.
-- É sobre seus quadros.
-- Hum-hum...
-- Sempre te dei a maior força.
-- Verdade...
-- E toda vez fico admirando-os.
-- É... você adora olhar cada detalhe.
-- Bom, na verdade, eu gosto mesmo é de transar com você.
-- Hã??!!!
-- E do vinho que sempre bebemos, da sua adega pessoal.
-- Não entendo...
-- Porque acho seus quadros uma coisa horrível, sem graça.
-- Nossa!
-- Na boa? Você não tem qualquer talento!



III

-- Oi!
-- Oi!
-- Já que nos cruzamos aqui no corredor, quero aproveitar pra te dar uma dica.
-- Diga! Sou todo ouvidos!
-- Seguinte: as meninas vivem dizendo que você gasta os tubos com roupa.
-- Verdade... sei que exagero, mas é uma mania mesmo.
-- Mas se fosse só isso não seria problema.
-- E o que é então?
-- Comprar até que tudo bem...
-- Sei...
-- O osso é gastar tanto e ter esse tremendo mau gosto!



IV

-- Não sei o que dizer...
-- Tá.
-- Isso nunca aconteceu comigo.
-- Imagino...
-- Verdade! Eu arraso na cama, gatinha.
-- Então deve ser alguma coisa muito séria...
-- Você acha?
-- Acho...
-- Mesmo?
-- Se você disse que é um comedor perfeito...
-- Nossa! As mulheres não resistem...
-- Engraçado...
-- O quê?
-- Ou você é mega cara-de-pau ou a mulherada anda matando cachorro a grito.
-- Agora você tá me ofendendo.
-- Pensa: preliminares... as suas foram passar duas vezes a mão na minha bunda antes de arrancar minha roupa e subir em cima e fazer todo o resto...
-- Hã??!!!
-- Quem devia ter brochado era eu! Transar de meias é o Ó!
-- Quê?
-- E, convenhamos, pra ser mesmo o sexy machine você teria de ter mais alguns bons centímetros no instrumento, tanto na largura quanto no comprimento.
-- Sua... sua... (aos prantos)
-- O pior: mesmo pequenino assim, não levanta nadica?!


V

-- Pessoal, fiz aquela lasanha que vocês amam!
-- Ah... que ótimo! Já estava sentindo falta!
-- Eu também! Uma delícia.
-- Desculpa, povo, mas discordo.
-- Hã?
-- Ela sempre faz a mesma coisa: essa maldita lasanha.
-- Fica quieto!
-- Fico nada! E toda vez a gente sai daqui querendo um Engov!
-- Mas que grosseria!
-- Tá falando o que se você é quem fornece o Engov pra todo mundo?
-- Melhor parar de beber, amigo!
-- E outra: esse molho, de latinha, é uma droga. Dá uma azia do cão!
-- Vamos embora, gente.... já deu!
-- Como já deu se nem serviu a sobremesa que, aposto!, é o pudim de leite com gosto de farinha?