23 de março de 2010

Da série Dissabores

Silêncio

Ele olhava sem direção, evitando os olhos dela.
Ela torcia a barra da blusa entre os dedos e admirava a ponta de seu sapato plataforma, marrom e esverdeado.
Ao longe, o som de uma sirene e, logo além, do carro vendendo "pamonha, pamonha, pamonha..."
Quem falaria primeiro? Mas falar para quê?
O que mais tem de ser dito depois de tudo?
Se não há salvação, se as coisas chegaram num ponto insustentável, o que ainda precisa botar pra fora?
De repente, como num impulso involuntário, a mão dele toca a dela.
Os dedos se entrelaçam, os pés se aproximam, os sons lá fora não são mais perceptíveis.
As batidas dos corações acelerados tomam o espaço todo, que antes parecia enorme entre eles, e agora parece nada.
O silêncio continua, os olhares não se cruzam.... mas a qualquer momento alguma coisa vai acontecer.
Ah, se vai!

Telepatia

Por mais que forçasse, emitisse todos os pensamentos, ela não se virava para vê-lo.
Aliás, ela nem havia percebido sua presença no meio de tantos outros.
Ele era tímido, sim. Mas tinha lá seu charme. Só que quem sacava isso precisava, no mínimo, percebê-lo.
Resolveu chegar mais perto e intensificar a energia que tentava passar para ela.
Mentalizava coisas como "Você é tudo de bom! Eu vou te fazer feliz! Nunca alguém vai cuidar de você tanto quanto eu"... e assim por minutos e minutos sem fim.
Mas ela, tão linda, não se movia em sua direção. Nem no balançar da cabeça, que espalhava no ar seus longos cabelos.
Ele desistiu, virou as costas e começou a andar em direção a porta.
Foi quando ouviu, na forma de pensamento "Ela não tá a fim de vc, mas eu tô".
Sentiu um olhar cravando a sua nuca. Virou-se e foi surpreendido por um sorriso há alguns metros de si.
Ela não era nada demais, nada daquela deusa de longos cabelos.
Mas contentou-se assim mesmo. Pelo menos, essa tinha a força do pensamento...

Ruído

Foram alguns minutos, mas o suficiente para desmoronar tudo.
Ele chegou em casa, direto para o banho. Deixou na cama a camisa branca, marcada com batom.
Ela chegou logo depois e viu que seu amado estava no banheiro.
Foi recolher a roupa... ao ver a marca rosa clara sentiu o coração acelerar!
Suas pernas ficaram bambas, começou a chorar e caiu no chão como que desmaiada, de tanto sofrimento.

"Por quê? Por quê? Tudo parecia tão bem entre nós! Trair pra quê? Jogar 20 anos de tanta cumplicidade fora por mera diversão? Ou não... ai, meu Deus! E se for algo sério? De anos? Será que ele é daqueles que tem duas famílias e uma não sabe da outra?
AIIIIIIIIIIIIIIII... que ódio! Tudo o que fiz por ele, as dificuldades que o ajudei a enfrentar... e quando ficou doente? Quem passou noites ao lado, sem dormir? E os dois anos desempregado? Quem segurou as pontas? Desgraçado!!!!"

Ele saiu do banho assobiando, todo animado. Ela já tinha descido, entrado no carro e saído sem rumo para nunca mais.
Ele não soube mais dela. E sofreu até morrer de desgosto, não sem antes ter voltado a fita daquele dia fatídico em sua memória quase morta:

"Sai pra trabalhar cedinho, entrei direto na reunião com os clientes americanos, sai às 11h e fui pra minha sala onde respondi a emails, liguei pra minha esposa e contei que chegaria cedo para jantarmos juntos, fui almoçar num fast food pra voltar logo e me liberar de todos os compromissos, sai às 16h e passei na floricultura para encomendar flores a serem entregues no meio do jantar romântico, aproveitei para ver a minha mãe, que mora ali perto, aliás, ela estava tão bem, depois de tudo o que passou com papai, tinha até se arrumado, feito o cabelo, Imagine!, há quanto tempo não via mamãe usando batom rosa".

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