Ronco do além
No começo, as coisas eram normais.
A mesma rotina naquela cidade do interior de São Paulo. Pegar o fretado às 6h45, colocar os tampões de ouvido, cobrir-se com uma mantinha estratégica (deixada no banco para as madrugadas frias), esperar a última pessoa embarcar - o que acontecia ainda na estrada - e cair em sono profundo.
No entanto, alguns acontecimentos inusitados começaram a chamar a atenção.
Tudo começou numa madrugada de lua cheia com a estreia de um novo ocupante do fretado.
O homem alto, forte, que atravessava o corredor como sombra, tamanho silêncio, sentava na sua poltrona sozinho. De tão grande, ninguém ousava espremer-se ao seu lado.
Não passavam 5 minutos e o ronco começava. Tímido, ao longe...depois ia tomando volume, com altos e baixos, mesclados a engasgos e assobios curtos.
Era mesmo assustador, porque nem com tapa ouvido ficava-se imune àquele ronronar que chegava a arrepiar a sobrancelha.
Os demais viajantes mexiam-se nas poltronas, em vão, porque qualquer posição não os livrava do trovão agargantado do homenzarrão da estrada.
Depois que o indivíduo descia do ônibus, alguns "ahhh..." baixinhos, em coro, escapavam dos ocupantes. Era um alívio tamanho, que até conseguiam aproveitar os últimos minutos de viagem num cochilo.
E assim foi. As olheiras aumentavam nos frequentadores do fretado. Percebia-se claramente, desde a chegada do roncador, a exaustão e a intolerância crescendo nas pessoas.
Era chegar no ponto onde o fulano subia que o incômodo batia e por pouco não virava uma vaia.
Um dia, no entanto, o roncador subiu. Sentou-se e, embora todos estivessem atentos ao primeiro ronronar, este não veio. Silêncio. Total.
Causou estranheza. Mas todos acabaram por dormir tranquilamente. O motorista também dava suas cochiladas e era acordado por buzinas de carros ao lado ou solavancos dos pneus que saiam para fora da pista.
Foi nessa manhã que aconteceu. Era possível sentir que algo ou alguém vagava pelo corredor do fretado, mas muito mais pela brisa fria que batia do que por algum barulho ou vulto. E a sonolência era tamanha que ninguém, mesmo tendo essa sensação, conseguia abrir as pálpebras.
Assim que o sujeito desceu, o sono passou, todo mundo acordou, mas alguma coisa estava diferente.
Durante o expediente de trabalho, um ou outro sentiu cansaço extremo. Marquinhas sutis no pescoço também foram percebidas por dois a três ocupantes do ônibus.
Até que, numa das vezes, também na lua cheia, um dos passageiros, muito intrigado com as sensações que se repetiam, resolveu usar um truque: pegou o ônibus depois de todo mundo, já quase na entrada da cidade de destino. Foi então que descobriu o mistério. Aquele tal indivíduo estava debruçado sobre uma senhora, chupando o pescoço da coitada. Pego no flagra!
O vampiro do fretado balbuciou alguma coisa para justificar-se, mas o que subiu por último ficou tão perplexo que sentou na sua poltrona para pensar o que fazer com o que tinha visto. Nem deu tempo... o roncador atacou o infeliz e não deixou sobrar nada.
No fim de semana, o pessoal da limpeza achou uma dentadura em baixo de um banco e deixou na garagem, para que o dono a encontrasse. Mas ninguém jamais deu queixa...
Os meses se passaram. Os passageiros daquele fretado estavam cada dia mais fracos, brancos, exaustos e estranhos.
Até que o indivíduo sumiu. Aliás, para o azar da empresa do fretado, não pagou a mensalidade. Maior calote.
Dias depois, o motorista, único poupado da chacina vampiresca, levou um susto... ele estranhou um forte barulho na cabine dos passageiros. Acendeu e apagou a luz interna, para avisar o coordenador do ônibus que precisava dele na frente. Mas ninguém apareceu.
Parou no acostamento e abriu a porta que o separava dos passageiros. Todos, sem exceção, roncavam fortemente, como motor de caminhão que abriu o bico, expondo os dentes caninos afiados e enormes.
"Cruz credo minha santíssima", correu para a direção e saiu em disparada, engatando uma primeira arranhada... mas perdeu o controle do veículo, atravessou a pista e derrubou o portão do cemitério, desmaiando sobre o volante.
Não me perguntem o que aconteceu... eu não sei. O que contam é que os passageiros, um a um, também abandonaram o fretado. Alguns perambulam à beira da estrada, aguardando ônibus de outras linhas.
E a dentadura? A do pobre homem que pegou o vampiro de jeito? Sumiu da garagem... foi vista enlouquecida, em disparada, correndo atrás do motorista, mais ou menos na divisa de Goiás com Tocantins.
2 comentários:
que doida!
caraca! muito bom! vou ficar mais "ligado"quando ouvir um ronco dentro do fretadão! e se os roncos se multiplicarem, é melhor começar a levar cruz/estaca/alho na mochila, só por garantia...
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